26/5/2020
Coletânea de textos filosóficos de Santo Agostinho
"O inimigo dominava o meu querer, e dele me forjava uma cadeia com que me apertava. Ora, a luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e, se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. Era assim que, por uma espécie de anéis entrelaçados - por isso lhes chamei cadeia - me segurava apertado em dura escravidão. A vontade nova, que começava a existir em mim [...] ainda não se achava apta para superar a outra vontade, fortificada pela concupsciência. Assim, duas vontades, uma concupsciente, outra dominada, uma carnal outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando, dilaceravam-me a alma. Por isso, compreendia, por experiência própria, o que tinha lido, Entendia agora como "a carne tem desejos contra o espírito, e o espírito tem-nos contra a carne" (Gal 5,17). Eu, na verdade, vivia em ambos: na carne e no espírito. Vivia, porém, mais naquele que aprovava em mim (no desejo do espírito contra a carne), do que no outro que em mim condenava (no desejo da carne contra o espírito). Com efeito, neste já não era eu quem vivia, visto que, em grande parte, sofria mais contra a vontade do que a praticava de livre-arbítrio. Mas, enfim, o hábito que combatia contra mim, provinha de mim, porque, com atos da vontade, eu chegava onde não queria. E quem poderá protestar legitimamente, quando um castigo justo persegue o pecador? [...]
A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; a alma dá uma ordem a si mesma, e resiste! Ordena a alma à mão que se mova, e é tão grande a felicidade, que o mandato mal se distingue da execução. E a alma é alma, e a mão é corpo! A alma ordena que a alma queira; e sendo a mesma alma, não obedece. Donde nasce esse prodígio? Qual a razão? Repito: a alma ordena que queira - porque se não quisesse não mandaria - e não executa o que lhe manda!
Mas não quer totalmente. Portanto, também não ordena terminantemente. Manda na proporção do querer. Não se executa o que ela ordena enquanto ela não quiser, portanto a vontade é que manda que seja vontade. Não é outra alma, mas é ela própria. Se não ordena plenamente, logo não é o que manda. Pois se a vontade fosse plena, não ordenaria que fosse vontade, porque já o era. Portanto, não é prodígio nenhum em parte querer e em parte não querer, mas doença da alma. Com efeito, esta, sobrecarregada pelo hábito, não se levanta totalmente, apesar de socorrida pela verdade. São, portanto, duas vontades. Porque uma delas não é completa, encerra o que falta à outra."
AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro VIII. (Cap. 5 e 9. p. 209-210,217 - Os Pensadores/Fragmentos).
"O corpo, devido ao peso, tende para o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para baixo, mas também para o lugar que lhe é próprio. Assim, o fogo encaminha-se para cima e a pedra para baixo. Movem-se segundo seu peso. Dirigem-se para o lugar que lhes compete. O azeite derramado sobre a água aflora à superfície; a água vertida sobre o azeite sibmerge-se debaixo deste: movem-se segundo seu peso e dirigem-se para o lugar que lhes compete. As coisas que não estão no próprio lugar agitam-se, mas quando o encontram, ordenam-se e repousam. O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que vá, é ele quem me leva."
AGOSTINHO. Confissões. Trad. Oliveira Santos e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro VIII. Cap. 9, 10. p. 382 (Os Pensadores). (Fragmento)
"O amor da sabedoria, pelo qual aqueles estudos literários me apaixonavam, tem o nome grego de FILOSOFIA. Alguns há que nos seduzem por meio dela, colorindo e adornando os seus erros com nome grandioso, suave e honesto. Quase todos os filósofos daquela época ou anteriores que assim erram são apontados e refutados nesse livro. [...]
Uma só coisa me magoava no meio de tão grande ardor: não encontrar aí o nome de Cristo. Porque este nome, segundo disposição da vossa misericórdia, Senhor, este nome do meu salvador e Filho vosso, bebera-o com o leite materno o meu terno coração, e ele conservava o mais alto preço. Tudo aquilo de que estivesse ausente este nome, ainda que fosse duma obra literária burilada e verídica, nuca me arrebatava totalmente."
AGOSTINHO. Confissões. Trad. Oliveira Santos e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro III. Cap. 4, 8. p. 83-84.(Os Pensadores). (Fragmento)
"Não busqueis fora de ti [...], entra em ti mesmo. A verdade está no homem interior. E, se descobrires que a tua natureza é mutável, transcende-te a ti mesmo. Lembra-te, porém, que transcendendo a ti mesmo, estás transcendendo a alma que raciocina, de modo que termo da transcendência deve ser o princípio no qual se acende o próprio lume da razão. E efetivamente, aonde chega todo bom raciocinador senão à verdade A verdade não é algo que se constrói à medida que o raciocínio avança; ao contrário, ela é aquilo a que tendem os que raciocinam. Vês aqui uma harmonia que não tem similares, e tu próprio conforme a ela. Reconhece que não és aquilo que a verdade é; a verdade não busca a si própria, mas és tu que a alcanças, procurando-a não de lugar em lugar, mas com o afeto da mente, para que o homem interior se encontre com aquilo que nele habita com desejo não ínfimo e carnal, mas com sumo e espiritual desejo".
AGOSTINHO. A verdadeira religião. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1987. p.39-72. (fragmento)
"Nosso saber consta de coisas que vemos e coisas em que acreditamos; das primeiras, somos testemunhas diretas, das segundas, temos o testemunho idêneo de outros que nos fazem crer porque, por meio de palavras e escritos, nos oderecem sinais dessas coisas que não vemos. Podemos com razão dizer que há saber quando cremos em algo com certeza e dizemos que vemos com a mente essas coisas nas quais cremos, ainda que não estejam presentes aos nossos órgãos dos sentidos [...]. Realmente, a fé vê com a mente [...]. Por isso o apóstolo Pedro diz:"Aquele em quem agora crês, não o vês"; e disse o Senhor: "Bem-aventurados os que não viram e creram". [...] Terás, assim, reconhecido a dirferença entre ver com os olhos do corpo e com os olhos da mente [...]. Crer se realiza com a mente e vê com a mente e as coisas em que com nossa fé cremos distam do olhar de nossos olhos. Por isso vejo a minha fé, mas não posso ver a tua, assim como tu ves a tua fé e não podes ver a minha, pois ninguém sabe o que se passa no espírito que está em cada homem até que venha o Senhor e ilumine os segredos das trevas e manifeste os pensamentos do coração para que cada um possa ver não somente os seus, mas também os alheios".
SANTO AGOSTINHO. Carta a Paulina. In: FERNÁNDEZ, Clemente (Org.) Los filósofos medievales. Madri: Editorial Católica, 1979. p.493-494 (texto traduzido)
"O bem supremo da cidade de Deus é paz perfeita e perfeita, não no nosso trânsito mortal do nascimento à morte, mas em nossa liberdade imortal de toda adversidade. Essa é a vida mais feliz - quem pode negá-lo? - e comparada a ela a nossa vida sobre a Terra, não importa quão abençoada com a prosperidade externa ou os bens da alma e do corpo, é inteiramente miserável. Todavia, aquele que a aceita e dela faz uso como um meio para aquela outra vida pela qual anseia e espera, não pode de modo razoável ser classificado como feliz mesmo agora - feliz mais propriamente em esperança do que em realidade".
AGOSTINHO. Cidade de Deus. XIX. 20. In: KENNY, Anthony. Filosofia Medieval. Trad. Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2008. p. 286. Vol II. (Fragmento)
"Que fruto nessa ocasião colhi eu, miserável, das ações que agora, ao recordá-las, me fazem corar de vergonha, nomedamente daquele roubo [de peras], em que amei o próprio roubo e nada mais? Nenhum, pois o furto nada valia, e, me tornei mais miserável. Sozinho não o faria - lembro-me de que era esta a minha disposição, naquele momento; sim, absolutamente só, não era capaz de o fazer. Portanto, amei também no furto o consórcio daqueles com quem o cometi. Amei, por isso, mais alguma coisa do que o furto. Mas não: não amei mais nada, porque a cumplicidade não vale".
AGOSTINHO. Confissões. Trad. Oliveira Santos e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro II, 8, 16. p. 73. (Fragmento)
"Procurei o que era a maldade e não encontrei substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema - de vós, ó Deus - e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas entranhas e se levanta com intrumescência".
AGOSTINHO. Confissões. Trad. Oliveira Santos e Ambrósio Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro VII, 16, 22. p. 190. (Fragmento)
Inscreva-se e fique por dentro de nossas novidades!